Por André Lucas Antunes Dias, 3.9
O Guarani é...
problemático
O Guarani é um marco do
Romantismo na literatura brasileira. José de Alencar retoma a memória do século
XVI, através de relatos de cronistas, e redesenha a história de um índio que se
vê cativo à filha de Dom Antônio de Mariz, fidalgo português. A forma com que o
autor traduz os acontecimentos que deseja representar é extremamente enviesada,
ideológica. Mas, antes de qualquer coisa, precisamos falar sobre Claude
Lévi-Strauss, estruturalismo, Francis Galton e Michel Foucault!
No século XIX, ano de publicação
do livro, era comum a corrente de pensamento “evolucionista”. Por mais absurdo
que pareça hoje (e guarde bem essa frase), após os estudos de Charles Darwin
acerca da Origem das Espécies terem vindo ao mundo, rapidamente, seu primo,
Francis Galton, elaborou o que ele chamava de “eugenia positiva”: Tendo
observado, a partir dos estudos de Darwin, que as espécies tendem a perder ou
ganhar características de acordo com o ambiente em que vivem ou com quem se reproduzem,
ele concluiu uma forma de, através de casamentos seletivos, selecionarmos
características mais desejáveis no ser humano, de forma a preservar corpos
saudáveis ao longo de nossa evolução. Na época, os estudos de Galton receberam
validação científica, sendo publicados em um artigo da revista Nature.
Não precisamos ir longe para
entender que os pensamentos de Galton foram base para a ascensão do nazismo na
Alemanha! Imerso no auge do liberalismo econômico, em que as potências
europeias se alastraram por todo o globo implantando suas indústrias e colônias
principalmente na África e na Ásia, a ideia de eugenia serviu como
justificativa ao imperialismo. “Podemos e devemos conquistar esses territórios,
basta olhar como são pouco civilizados, não possuem um governo ou sistema como
o nosso. Estaremos fazendo um bem a esses selvagens, fracos, os ajudaremos a
evoluir”.
No livro O Guarani, Peri, o índio
que se voluntaria a cumprir todos os desejos de Cecília, filha de Dom Antônio
de Mariz, é um personagem extremamente idealizado. Ele possui uma força capaz
de vencer um combate, sem armas, contra uma onça, assim como sentidos
extremamente aguçados. Quando menos se espera, na emergência de um conflito,
suas flechas passam pelos olhos dos inimigos e ele aparece para salvar o dia.
Peri é uma figura onipresente, quase como se ele fosse a própria natureza das
matas, até o momento, ainda pouco exploradas, do Brasil. Cecília, em
contrapartida, é completamente frágil. Se o índio é a representação da
natureza, da própria floresta, Ceci é uma árvore sagrada a qual deve ser
preservada. Não é à toa que seu quarto, tal qual um castelo de princesas da
Disney, é extremamente inacessível, no último andar, cobiçado pelo aventureiro
italiano Loredano. Este personagem, por sua vez, é um louco apaixonado,
completamente corrompido pelo desejo, pronto a raptar a menina de sua casa (guardem
essa informação). Trocando em miúdos, uma tribo Aimoré, descritos como
indígenas completamente diferentes de Peri, com aparência física mais próxima
de animais não humanos, ataca a casa de Dom Antônio de Mariz. Apesar dos
esforços de Peri, a solução final é fugir com Cecília e abandonar a família,
que não conseguiria permanecer viva com o avanço dos Aimorés. Os índios
“selvagens” invadem a casa, a incendeiam e, ao matar a família, também se
aniquilam, pois a casa está repleta de pólvora.
Façamos um esforço
interpretativo: José de Alencar se localizava pouco depois da vinda da Família
Real ao Brasil. Ele desejava construir um herói para esse reino que acabava de
deixar seu status de colônia para trás. Para tanto, ele constrói uma história
em que índios degenerados que se atrevem a destruir o núcleo familiar português
sucumbem em sua própria empreitada, restando apenas aquele índio que personifica
os valores cristãos e aristocráticos europeus. Em suma, o autor propunha dizer
que o Brasil recebeu uma bênção ao ser colonizado por Portugal, transformando
os índios que aqui viviam em eternos cristãos cativos, nossos defensores - um
casamento com a própria natureza (Peri) que preserva nosso ouro verde (Cecília).
O sociólogo e antropólogo Claude
Lévi-Strauss foi um dos fundadores do estruturalismo: campo de estudo que
pretende analisar as civilizações de forma diacrônica. Isso significa que,
observando as tendências eugenistas e evolucionistas de sua época, ele propõe
uma análise que leve em conta a consciência de cada época. Deve-se dividir os
estágios das civilizações em “cultural” e “selvagem”. O primeiro seria um
estágio complexo, organizado, enquanto o segundo o precederia, sem organização.
Contudo, segundo ele, o erro está em valorar cada estágio como superiores ou
inferiores em relação a outros. Cada sistema se desenvolveria de sua forma e
com suas regras próprias. Ao contrário dos pensadores evolucionistas, não
haveria um estágio final de evolução o qual todas as civilizações precisam
alcançar, pois cada uma tem seu desenvolvimento e particularidades. Apesar de
trazer a figura do índio como herói nacional, personagem tão injustiçado até os
dias atuais, quando ele imprime ideais europeus ao que considera como o índio
ideal (em oposição aos Aimorés) ele ainda diz que a cultura europeia é superior
à dos selvagens que aqui viviam e que foram agraciados com a chegada dos
portugueses. Para piorar a situação, a representação do italiano é colocada com
um dos antagonistas da história, e é estranho ter um estrangeiro que, por
sinal, quer roubar a “riqueza” (Cecília) dos europeus, ser representado dessa
forma na história, logo na época em que os portos do Brasil finalmente se
abriam ao comércio com outros países.
Chegando aos finalmentes, os
estudos do filósofo Michel Foucault podem nos dar uma luz de porque uma ideia
tão absurda foi glorificada na época. Segundo ele, a verdade é “epistème”, ou
seja, um constructo do jogo de forças políticas da época. No século XIX, era
necessário justificar o imperialismo das potências europeias, e, por isso, uma
ideia absurda como o valor de uma vida ou cultura passaram facilmente a um
artigo da Nature. Nos tempos atuais, sabemos que dificilmente um estudo como
esse seria aprovado. Mas a epistème pode moldar a forma que nos comportamos,
através da determinação do que é verdade ou não e, ainda pior, o que é saudável
ou não. Segundo Foucault, concepções como a “loucura” têm sentidos diferentes
de acordo com cada época, e sofrem interferência dos discursos de uma
determinada época. Voltando à análise de Strauss, deve-se analisar, mesmo os
teóricos de ideias tão absurdas, de forma diacrônica os fatos de uma época, e
não olharmos ao passado a partir de nossas próprias concepções atuais.
Repare, O Guarani é uma grande
obra brasileira, esteticamente perfeito, e teve sua importância na época em que
foi lançado. No entanto, precisamos ser maduros o suficiente para criticá-lo e
analisá-lo de acordo com a epistème de sua época. Há milhares de outras coisas
para se discutir sobre esse livro, e a conversa não acaba por aqui, mas quem
sabe isso fica para algum outro dia?
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